Saiu na imprensa: Que Brasil é esse?
Saiu na imprensa: Que Brasil é esse?
01 out 14O Brasil se sentou ao meu lado no ônibus que me levava de São José dos Campos para o Aeroporto de Guarulhos, no último domingo. Eu não escolhi ter o Brasil como companheiro de viagem, mas ele queria que eu o conhecesse melhor.
Assim que o Brasil me viu, já puxou conversa. Do outro lado do corredor, ele disse que estava nervoso porque havia muito tempo não andava de ônibus. Não tinha costume, só andava na boleia do caminhão.
O ônibus não lotou, a dona da cadeira dele chegou e o Brasil, sem cerimônia, se sentou do meu lado. Contou que não arriscava a vida dele na estrada. Parava o caminhão e dormia. “Tem gente que dorme e acorda morto”, disse o Brasil. Mas não adiantava, a fábrica (uma montadora da região) chama pelo rádio e cobra rapidez. Ele disse que viu vários motoristas passarem como loucos por ele. Quilômetros depois eles estavam tombados e mortos, alguns com a família.
Confesso que o cheiro de bebida alcoólica do Brasil me incomodava demais. Olhava ao redor e via cadeiras vazias. Ficava imaginando uma maneira de mudar de lugar. Ele prosseguia sem cerimônia. O Brasil disse que largou da mulher com quem morava junto. Ela já tinha seis filhos, era uma baiana brava, e ele não combinava com os filhos dela.
Enquanto ele falava, eu tentava ler um livreto que ganhei de presente quando saí de São José. Acho que minha leitura incomodava mais o Brasil do que o bafo dele me aborrecia. Lá pelas tantas ele perguntou: “Estudar tanto assim não faz mal pra cabeça, não?” Eu havia acabado de ler uma reflexão sobre “Ouça mais, fale menos”, baseada no livro de Tiago.
Os assuntos se misturavam em alta velocidade. O Brasil estava chateado com as sobrinhas. Uma de 12 e a outra de 13 já são mães. Assim que “encorparam”, engravidaram. Ele disse que não se conformava. Eu perguntei se os namorados assumiram as crianças… o Brasil nem respondeu. Naquele momento a aplicação da vacina HPV em meninas fez todo o sentido. O Brasil também quis saber a minha idade. Ele disse que eu não aparentava ter mais do que 40 anos, não. Como seriam as mulheres que ele conhece nessa faixa etária?
O Brasil me disse que nunca roubou e nunca matou. Mas disse que a polícia já correu atrás dele e disparou sete tiros. Nenhum pegou. “Não acha que foi Deus que me protegeu?”, ele quis saber. Alguma coisa na minha resposta fez com que ele disparasse um “Você é evangélica? Eu sou desviado da Igreja Batista”. Não perdi a oportunidade e disse que ele deveria voltar para a igreja, e que a vida sem Deus é muito difícil. O Brasil disse que “emocionou” e ficou com vontade de chorar. Falou que, depois que desviou da igreja, voltou a beber e que achava que Deus tinha me colocado no caminho dele. Pediu orações.
Sem perder tempo, pediu que eu anotasse o nome e o telefone. Não quis escrever, insistiu que eu mesma tomasse nota. Eu aproveitei e tirei uma folha de papel de dentro do livreto sobre o que é “ser amigo de Deus”. Disse que acreditava que aquele estudo era para ser dele e não meu.
O ônibus nem bem entrou no aeroporto, o Brasil se levantou e deu tchau. Eu fiquei pensando e remoendo tudo que ele me contou. Eu acredito que Deus também colocou o Brasil no meu caminho. Do que o Brasil precisa? Como professora, penso que o Brasil precisa de estudo. Como mãe, penso que as sobrinhas do Brasil precisam de pais e mães presentes e responsáveis. Como cristã, penso que o Brasil precisa de Cristo.
O nome dele é Gonçalo, Gonçalo do Brasil. O Gonçalo é o nosso país.
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Saiu na imprensa:
Jornal Gazeta do Povo, 18 setembro 2014, Caderno Serviços
Crônica assinada por Adriana Pasello
Sensacional. Parabéns!